por Felipe José
Se você é uma pessoa LGBTQIA+ em Campina Grande, na Paraíba, talvez já tenha ouvido falar no nome Maria de Kalú. Se tem menos de 30 anos, como eu, provavelmente já deve ter ouvido da boca de amigos, assistido o documentário de 2009, ou até visitado o bar Vila Arco Íris que pegou o nome de Kalú emprestado por um tempo. Se tem mais que 30, por outro lado, talvez já tenha visitado o bar original e carregue consigo um baú de memórias desse que é considerado o primeiro bar LGBTQIA+ da cidade.
O bar Maria de Kalú, localizado no bairro do Catolé, em Campina Grande, nasceu em 1985 na própria casa em que sua fundadora Maria Santana Santos mora até hoje. Seu pai, Carolino, era conhecido como "Kalú", daí nasce seu apelido, Maria de Kalú, por ser filha dele. O bar com seu nome, que funcionou oficialmente até 1996, serviu de acolhimento para mulheres lésbicas, travestis, pessoas bissexuais e homens gays que encaravam o espaço como um lugar para expressar livremente suas identidades, compartilhar histórias e namorar longe dos olhares preconceituosos da sociedade.
Baú de memórias
Mesmo aos 87 anos, e após ter sofrido dois AVC (Acidente Vascular Cerebral), Maria de Kalú resgata na memória lembranças do tempo em que esteve à frente do bar. Ela explica que a ideia para a criação do bar foi uma sugestão de amigas que costumavam frequentar a casa para conversar, mas não lembra bem como acabou. "Olha, eu nem sei como fechou. Se fechou ou não fechou. Porque nunca terminou de vez. Sempre vinha gente conversar. Eu cheguei a ter o AVC. Acho que foi com isso, com essa doença, que foi ficando fraco, fraco até...", relembra Kalú.
No documentário já citado, dirigido por Carlos Mosca e Ronaldo Nerys, uma Maria de Kalú mais nova aponta um outro motivo para o fechamento do bar: as brigas constantes que aconteciam entre as clientes. Preocupado com a saúde e segurança da mãe, o seu filho mais velho, Alberto dos Santos, que na época já morava fora, pediu que Kalú fechasse o estabelecimento. Apesar de ter sido motivo de preocupação para o filho, Maria relembra das brigas de forma bem humorada. Entre risos ela conta que:
"Tinha muita briga. De mulher, somente. As mulheres tinham ciúmes. Pegavam a namorada com outra pessoa e começava assim a briga. E eu entrava no meio, já levei até um bofete nos olhos (risos). Era briga mesmo! Quando não tinha uma no domingo, elas mesmo diziam: Não teve briga, não teve bar!"
Mas nem só de briga vivia o bar de Maria de Kalú. Durante o seu auge, o estabelecimento chegou a ser frequentado por professores, advogados, médicos, vereadores e muitas outras pessoas, não apenas de Campina Grande mas também de cidades como Alagoa Grande, João Pessoa, Natal e até Rio de Janeiro. Além disso, o espaço costumava ter apresentações com música ao vivo. Entre as artistas que já passaram por lá, nomes como o de Naninha da Seresta e o de Roberta Miranda. Para Maria, aquela foi a melhor fase de sua vida. Ela conta que nunca passou um domingo só, e afirma:
"Eu gostava quando o bar estava cheio!"
Espaço de resistência
Apesar das particularidades do estabelecimento, que Maria nunca fez questão de esconder, ela relata que nunca sofreu ataque direto ou represália por parte população ou dos vizinhos. Estes até acharam ruim no começo (por causa do barulho), mas quando o bar fechou se queixaram que os domingos não eram mais os mesmos. Por outro lado, o pensamento preconceituoso nunca deixou de existir e Kalú relata casos de pessoas que passavam na frente da casa "nas carreiras", com pressa, assustadas demais com a possibilidade de sequer olhar para a casa.
Enquanto isso, os olhares dessas pessoas preocupavam os frequentadores da casa. Para despistar preconceituosos, os clientes de Kalú adotaram codinomes como "MK" ou "Associação" para se referir ao espaço. Outra estratégia utilizada consistia em descer em paradas de ônibus, muito mais distantes, e ir andando a pé até a casa, para então entrar escondido. Para muitos, a preocupação maior era a própria família. Kalú destaca que era comum aparecer pais, mães e até irmãos procurando familiares, mas ela sempre fez questão de proteger os seus.
Cícero (Thyto) Maia, que foi frequentador assíduo da casa de Maria de Kalú desde jovem é quem relata um desses casos. Certo dia sua mãe foi lhe procurar lá e Maria disse que ele não estava. Sua mãe não quis entrar pra conferir mas, desconfiada, decidiu ficar de tocaia numa parada de ônibus próxima ao bar. Para ajudar Cícero a sair de lá despercebido, Kalú arranjou um vestido pra ele sair disfarçado acompanhado de um outro rapaz. Cícero conta que esse rapaz o levou de carro para outro ponto da cidade, para que então trocasse de roupa e pudesse voltar pra casa sem levantar suspeitas.
Maria mãe acolhedora
"Eu sempre digo que nós éramos órfãos de pais vivos. E Maria era quem nos acolhia. Era quem nos dizia o caminho a seguir. Era nossa bússola. Lutava bravamente a favor da gente. Muito maravilhosa. Tenho como uma mãe, uma segunda mãe."
Thyto é quem também afirma isso. Ele lembra com carinho e apreço dos momentos que viveu no bar e reforça o apoio que Maria oferecia numa época em que ele e outros jovens LGBTQIA+ tinham ainda menos liberdade do que hoje para se expressar livremente dentro de suas próprias casas. E pelo visto ele não é o único que carrega esse sentimento, segundo Israel Santos, filho mais novo de Kalú, outras pessoas que costumavam frequentar o bar seguem procurando saber dela e fazendo visitas, quando possível.
Como na maioria das vezes era impossível falar de relacionamentos homoafetivos com seus próprios familiares, ou mesmo com amigos, muitos dos jovens que frequentavam o bar recorriam a Kalú para servir de conselheira amorosa. "E traziam problemas. Diziam 'Maria, eu estou com problema com fulana, ela não quer nem me ver. O que é que eu faço?' e eu 'Manda ela aqui para conversar comigo' e no final elas terminavam conversando, ficando juntas, ficando bem", explica Maria.
Apesar das tensões existentes com os pais dos jovens e das moças que frequentavam o lugar, Maria de Kalú revela que alguns deles reconheceram a importância de seu acolhimento e agradeceram por manter seus filhos e filhas seguras. Quando o bar estava chegando ao fim, chegaram até a pedir que ela continuasse abrindo, no que ela prontamente respondia: tá aberto! Mesmo sem o bar, Maria nunca fechou as portas de sua casa para pessoas LGBTQIA+ como ela, como eu e como muitas outras que já passaram por lá.
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Texto: Felipe José
Entrevista e Produção: Felipe José
Editor de Especializado: Eduardo Gomes
Editor-Chefe: Rafael Melo
Diretora de Redação: Ada Guedes
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