por Manuel Duarte
Às vezes, identificar o que caracteriza um povo não é uma tarefa simples. Lançar olhares à sua cultura é a maneira mais eficaz de obter êxito nessa tarefa. No interior da Paraíba, em um município de nome bastante sugestivo, Esperança, existe uma comunidade rural chamada Riacho Fundo. Ela abriga uma riqueza cultural, materializada em bonecas de pano, a Boneca Esperança, uma produção artesanal que apresenta características que a diferenciam das demais.
Rostos compridos, roupas de chita, tudo isso é tradição, assim como nos revela Nubia de Oliveira, ex-presidente da Associação de Artesãos do Sítio Riacho Fundo, onde funcionava a Casa da Boneca Esperança, hoje fechada:
“É porque é bem tradicional. A gente aprendeu com a minha tia. (...) A turma toda que entrou para fazer esse tipo de artesanato, aprendeu o que ela ensinou. Então a gente não quis mudar a tradição”.
Mesmo diante das características que são associadas diretamente às Bonecas Esperança, a originalidade nunca é deixada em segundo plano. Dona Maria Selma, artesã da associação desde o início de suas atividades, no ano de 1999, relata que cada artesão tem autonomia no momento de produzir as bonecas: “Cada um tem o seu jeito de fazer, eu faço de um jeito, já tem outra que faz de outro jeito. Não é tudo igual, não! Cada um tem seu trabalho, cada um do seu jeito”.
Origem de um sonho
A “Bruxinha”, como era conhecida a Boneca Esperança antes de deixar o anonimato e ganhar o mundo, tem origens enraizadas na infância de todos em Riacho Fundo. As bonecas de pano sempre foram uma solução para os anseios das crianças da comunidade que não tinham condições de comprar brinquedos mais sofisticados.
Essa cultura teve origem com Dona Maria do Socorro da Conceição, que, já inspirada pela arte da tia, Maria Vicença, em fazer tal ofício, iniciou a produção das bonecas ainda quando garota. O objetivo desse fazer artístico, até então, era apenas brincar. Sua irmã, Aderita, logo se juntou à ela e passaram a confeccionar as peças artesanais para vender, foi quando conheceram uma nova fonte de sustento para a família.
Por muito tempo, o trabalho das duas não era reconhecido, porém, no ano de 1999, foi criada a Casa da Boneca Esperança, com cerca de 50 artesãs, com o incentivo do Programa de Artesanato Solidário (ARTESOL) e, a partir daí, foram oferecidas diversas oficinas de confecção de bonecas. O projeto também teve o incentivo do poder público municipal e estadual, além do Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (SEBRAE).
Bonecas Esperança em vários modelos - Foto: Nubia de Oliveira
Essa tradição e esse incentivo à criatividade, ao empreendedorismo e ao fazer artístico, mudou a vida dos artesãos da comunidade, que ganharam oportunidades de sobreviver e se sustentar daquele trabalho. Nubia nos relata como a vida dessas pessoas sofreu transformações: “Uns conseguiram comprar casas, pagando à prestação. Outros conseguiram comprar móveis, máquinas, transportes, então foi muito útil”.
Um produto identitário
A expressividade identitária da Boneca Esperança é algo inquestionável. Ela representa a história de um povo muitas vezes marginalizado, que através da conjunção de retalhos, linhas e enchimentos, foi conhecido e valorizado pelo mundo. O diretor do Departamento de Cultura do município de Esperança, André Oliveira, verbaliza isso: “A Boneca Esperança é uma identidade cultural material e imaterial. Material pelo produto finalizado, e imaterial, porque, de geração em geração foi passando este fazer cultural”.
A importância da Boneca Esperança, muitas vezes, não é reconhecida pela própria população do município, porém, ainda existem pessoas que acreditam no potencial que essas bonecas possuem. É o caso de Veridiana da Costa, esperancense, que trabalha no setor educacional de Riacho Fundo, e nos relata:
“Eu acho que a cultura da Boneca Esperança é viável e importante para a educação do nosso município. A Casa da Boneca é uma instituição que ajuda muito as pessoas da comunidade na produção e também no cultivar dos princípios básicos das famílias”.
A expressividade desse movimento cultural elevou a Boneca Esperança a patamares não antes imaginados por artesãos do interior da Paraíba. Estes artistas viram na boneca de pano, uma oportunidade de esperançar. A Boneca Esperança ganhou o Brasil e o mundo. O aspecto e originalidade das bonecas ganhou notoriedade ao longo dos anos, participando de feiras e exposições de artesanato nacionais e internacionais.
Outro ponto alto da história das bonecas foi o projeto Cadeira Paraíba, desenvolvido pelos irmãos Fernando e Humberto Campana em 2006, designers que reuniram bonecas dos mais variados estilos na estrutura das cadeiras. E diante da produção, Nubia se orgulha: “Isso é um orgulho para a gente, é uma satisfação”.
A repercussão gerada pelo projeto fez com o que as encomendas das bonecas aumentassem, permitindo a expansão do empreendimento, o que beneficiou os artesãos da associação. Porém, existe uma problemática nisso tudo, os irmãos Campana, em suas publicações a respeito do projeto, se elevaram ao “status” de protagonistas, resumindo o brilhantismo da cadeira ao seu faro artístico, deixando em segundo plano o trabalho dos artesãos da Casa da Boneca Esperança.
Fim de um sonho?
Apesar de tanta repercussão, importância cultural e alternativa viável aos moradores de Riacho Fundo, hoje, as bonecas são desvalorizadas. Nubia conta que a administração pública de Esperança, por parte do setor de cultura, busca inserir as artesãs nos eventos culturais. Segundo ela, há diversos elementos que dificultam a manutenção das atividades da associação, como problemas na infraestrutura da sede e a falta de encomendas. Para a ex-presidente, não são tomadas medidas efetivas que buscam garantir a existência ameaçada da boneca Esperança.
André Oliveira relata que houve incentivos por parte do poder público municipal com a causa, mesmo após o fim das atividades da associação que, segundo afirma, ocorreu antes de 2017. Já as artesãs nos relataram que as atividades da associação foram encerradas de maneira definitiva com o início da pandemia de COVID-19, em 2020, devido aos problemas já citados por Nubia de Oliveira, e assim passaram a produzir de maneira esporádica em suas residências.
André Oliveira ainda relata que, desde que assumiu o Departamento de Cultura, foram realizadas diversas ações em prol da cultura das Bonecas Esperança. Ele destaca a inserção das bonecas em exposições em épocas festivas, contribuições financeiras em viagens para feiras, elaboração de um plano de ação para aquisição de verba da Lei de Emergência Cultural Aldir Blanc e o reconhecimento das bonecas como patrimônio do município.
Por meio da aquisição da verba da lei, um artesão recebeu, à nível federal, o valor de R$ 1 mil reais, e à nível estadual, dois artesãos foram contemplados com o valor de R$ 5 mil reais. De acordo com André, a gestão municipal, por meio do Departamento de Cultura, contribuiu no ato da inscrição, oferecendo suporte na confecção de seus portfólios artísticos, no currículo e no preenchimento do formulário em uma plataforma online, descrevendo o projeto para que possam concorrer ao prêmio.
Segundo o diretor do Departamento de Cultura do município, existem projetos que buscam contribuir com o retorno das atividades da associação, mas que para isso é necessário que os artesãos se organizem e que “a Casa da Boneca Esperança não tenha uma queda”, que estaria relacionada com um eventual risco de os artesãos, após a reabertura da associação, fraquejarem e desistirem de produzir.
Apesar de sua afirmação, André não relata nenhum projeto de lei em andamento na Câmara Municipal de vereadores, que tenha como objetivo a retomada das atividades da associação. A respeito dos fatores que desencadearam a estagnação das atividades da associação, ele cita a falta de apoio do setor comercial e público de Esperança e a falta de pagamento de muitas encomendas. Esse desestímulo também é proporcionado por parte da própria população esperancense que não reconhece o trabalho dos artesãos, assim como relata Nubia:
“Cabe a muitos reconhecerem. Uma pena que, um trabalho tão bonito como esse da gente, não tenha. Uma pena que, pelo menos no nosso município, não é tão apoiado”.
Mas o desejo de permanência se sobressai à realidade árdua vivida pela Casa da Boneca Esperança. Em sua fala, Nubia expressa, de maneira a representar os outros artesãos, o sentimento e o desejo de persistir: “Se depender de mim, esse nosso trabalho, essa nossa cultura, não irá morrer, eu não vou deixar morrer. A gente vai repassar de filho para neto, e vamos levar adiante”.
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Texto: Manuel Duarte
Entrevista e Produção: Manuel Duarte e Julia Nunes
Editor de Texto: Eduardo Gomes
Diretora de Redação: Ada Guedes
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