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Da tradição à precisão: conheça a história de Lia, fundadora do Memorial do Cuscuz

Por Tanmara Gomes


Da toalha de mesa ao teto cheio de bandeirolas, do sabor da comida à recepção calorosa de Dona Lia, sustentada por um sorriso e um prato tão familiar na cozinha dos nordestinos, são evocados os sentimentos mais ternos de uma infância paraibana. Muitas vezes marcada pela dureza da vida, mas também pela implacável força da luta para não deixar de vivê-la.

Dona Lia segurando o prato mais famoso de seu restaurante - Foto: Tanmara Gomes

Nascida e criada na Paraíba, Maria Auxiliadora Mendes da Silva traz consigo uma pluralidade de habilidades artísticas presentes em nossa cultura. Da cozinha ao bordado, de tudo sabe um pouco e foi a partir desses conhecimentos tradicionais, que conseguiu alterar o rumo de sua vida.


Memória afetiva

De todas as coisas expostas no Memorial do Cuscuz, localizado na cidade de Ingá (PB), o moinho de milho que era de sua avó diz muito sobre sua infância. Uma família marcada pela falta de recursos básicos, mas que sempre enxergou na comida tradicional uma forma de subsistência.


De dia trabalhava na lavoura do pai e a noite moía o milho para fazer o angu do jantar.

Seguiu nessa rotina até os 19 anos de idade, quando resolveu fugir de casa com o namorado, saindo do município de Ingá para o estado de Pernambuco. Se tornou mãe solo quando o marido a expulsou de casa. Sem trabalho, viu a história se repetindo, na qual os protagonistas da fome agora eram seus próprios filhos, tendo então que resgatar da memória afetiva tudo que poderia fazer para sustentá-los.


Logo se lembrou da comida típica que sua avó fazia para ela quando menina, o cuscuz de cabeça amarrada, feito do milho moído, enrolado com um pano e cozido em fogo de lenha. Ela começou então a produzir e vender na porta das obras em Imbiribeira, junto com suco de goiaba.

"Me lembrei daquele cuscuz que ela fazia pra gente comer como tradição, mas eu fiz por precisão", diz ela.
Moinho de milho exposto no Memorial do Cuscuz - Foto: Tanmara Gomes

Foi assim que conseguiu, dia após dia, prover o alimento em sua pequena casa improvisada, feita com quatro paus de mangue, uma colcha de xanil e uma única cama, que muitas vezes se enchia de água por ficar dentro da maré, relembra emocionada. Apesar de tudo, a dificuldade não conseguiu aplacar sua força e com o suor de seu trabalho, conseguiu criar todos os filhos.


Adeus e olá

Durante anos, Dona Lia cuidou também dos seus pais, mas após a morte deles, enfrentou uma depressão profunda. Em meio ao luto, ela conheceu o SEBRAE e descobriu o tesouro escondido que havia dentro de casa. Sem imaginar, os objetos de família guardados durante tanto tempo, tornaram-se parte do seu museu pessoal, nascendo então o Memorial do Cuscuz.

"Quando o SEBRAE entrou aqui dentro e disse assim: 'pra que a senhora quer isso aqui?' Tudo ali no pé da parede. Aí eu falei assim: 'é que isso aqui foi da minha avó, foi do meu avô, da minha tia e eu guardo aqui como uma lembrança'. Aí eles falaram assim: 'a senhora sabe que tem uma cultura dentro de casa?' Então aquilo fez voltar tudo vivo na minha mente".

Através do estímulo certo, ela se despediu do sofrimento e saudou uma nova fase de sua vida, a do empreendedorismo local. Com foco na comida regional e nas memórias trazidas pelo sabor.


(Re)significados

Na cabeça, traz consigo um lenço vermelho e espalha essa cor intencionalmente pela decoração do restaurante. Reforçando as boas lembranças que tem de uma senhora pernambucana, que pendurava na janela do décimo andar de seu prédio um avental de mesma cor, o gesto significava comida para Lia e seus filhos, que na época, ainda eram pequenos.

Dona Lia e seu lenço vermelho - Foto: acervo pessoal

Igualmente, o pé de goiaba plantado no quintal de sua casa não a deixa esquecer de como teve que se reinventar durante o desespero de passar fome. Hoje, ela diz não precisar mais dele como fonte de sustento, mas ressalta a importância de vê-lo frutificar juntamente com suas ações, como um sinal de superação.

"Está vendo você? Tudo tem um marco na minha vida", adiciona Dona Lia.

Ela tenta retribuir todo o carinho que recebe através do afeto e passa a mensagem do quão importante é batalhar por dias melhores. Hoje, recebe em seu memorial pessoas de todos os lugares do Brasil e do mundo. Quem passa por lá sente no ambiente o acolhimento e o impacto de sua história.


Orgulhosa, confessa que o almoço servido antes da nossa entrevista foi o primeiro que preparou sozinha, depois de um período afastada da cozinha para se recuperar de uma cirurgia no olho. A ansiedade por acolher os visitantes é perceptível e o amor pelo que faz é nítido em todo o preparo. Dona Lia ainda desabafa sobre a preocupação que tem em manter vivo tudo o que construiu, chamando atenção para o desejo de que o fruto do seu trabalho nunca se perca.


____________________ Entrevista e produção: Tanmara Gomes

Editor de Texto: Eduardo Gomes

Editora-Chefe: Ada Guedes

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