por Eduardo Gomes
A cena teatral de Campina Grande vivencia cotidianamente os modos do sentir. É neste experimentar que o teatro causou desconforto aos episódios mais duros de nossa história recente, quando o fazer artístico seguiu atravessado de repressão e silenciamentos. Tal movimento, por vezes feito na coxia do espaço cênico, é suscitado pelo processo colaborativo que resiste pelo corpo em cena.
Este é o caso da Companhia Café com Pão de Teatro. Cria das dificuldades de um cenário social adverso, este grupo se faz ouvir nas ruas e palcos da Paraíba. Histórias e feitos que são contados desde a sua fundação, em 15 de junho de 2015. No fervor dos festejos juninos da cidade que detém a marca d'O Maior São João do Mundo, o ato de unir pessoas a experiências fez conceber tal proposta.
Primeiro sinal: tomem seus lugares
Sentados à mesa, os idealizadores Jhonata Almeida e Kennedy Gomes mobilizaram amigos e parceiros de cena a pensar e refletir sobre os fazeres daqueles que movimentam a cultura na região. Uma garrafa de café e meia dúzia de pães foram o suficiente para alimentar corpos dos quais transbordavam arte, fazendo surgir destas trocas o nome da trupe.
Os fundadores Jhonata Almeida e Kennedy Gomes - Foto: acervo pessoal/ Rafaela Costa
Cada conversa que cercou os primeiros encontros se inspirava no olhar sensível sobre o cotidiano. Nas linhas de criação do grupo, Jhonata Almeida relata que os dois buscavam a valorização da cultura popular que não estivesse apartada de suas raízes. Almeida também recorda que, desde as primeiras experimentações teatrais, a Companhia trabalhou com diversos artistas até chegar na configuração atual que conta, além dos fundadores, com os artistas Gedeão Ferreira e Yorrana Bizai.
Kennedy Gomes explica que os seus integrantes têm buscado profissionalizar e diversificar o seu portfólio. Atualmente, além do registro profissional, a Cia. Café com Pão também apresenta trabalhos de musicalização, pernas-de-pau, produções com instrumentos artesanais e brinquedos populares.
O grupo se funda com o intuito de regar a cultura popular, de afirmar de onde viemos e as nossas raízes. Essa é uma característica muito forte do grupo e que se mantém. A gente muda um pouco aqui e ali, mas por trás, no raio-X, a gente traz a cultura popular muito forte em todas as nossas abordagens, reforça o Kennedy Gomes.
Ainda no ano de 2015 foi criado o primeiro espetáculo da Café com Pão. Chamado de Caminho de Fulô, a peça teatral levou a experimentação cênica para expressões nordestinas transcritas em um recital-poético-musical. Este casal de artistas bem como os seus parceiros de cena mergulham nos estudos da memória, da história, e do folclore brasileiro registrados no universo cascudiano. A proposta inspirou comédias como Palavra de Rei (2017) que pôs em cena questões sociais sobre a desigualdade.
Herança e ancestralidade também demarcam a estética da Companhia Café com Pão de Teatro. São afetos de longa data que se encontram em atos de poesia e musicalidade. Nada mais propício que estrear, no ano de sua criação, a trajetória de um grupo emergente pelo projeto Quartas Acústicas, desenvolvido no Mini Teatro Paulo Pontes. Este equipamento cultural foi construído na primeira reforma do Teatro Municipal Severino Cabral (TMSC), ainda no ano de 1975, como um de seus anexos.
O próprio Teatro surge como alegoria ao que o grupo almeja para si: transitar entre o passado e o presente, já que a edificação consolidou a arquitetura moderna na cidade de Campina Grande. Ao mesmo tempo, o TMSC emergia como um território material para as expressões simbólicas do sensível que a proposta da Café com Pão viria a apresentar ao público.
Segundo sinal: as vozes se misturam
Em pouco tempo, a Companhia Café com Pão de Teatro alcançou os espaços escolares. Ainda no ano de 2016, lançaram o projeto Guarnicê, que promovia a difusão e reafirmação das tradições populares através do potencial criador e crítico da criança, como explica Jhonata Almeida. Adentrando nos espaços de educação formal, a Companhia independente uniu tantos jovens e crianças em escolas municipais campinenses das quais o número de participantes foge à memória dos articuladores.
A infância, o social e o lúdico são temas recorrentes da Café com Pão. No país em que a infância e a adolescência são afetadas pelas muitas faces da pobreza, a Companhia se mantém firme no fortalecimento do teatro como exercício de inclusão social de jovens pelas escolas paraibanas. Foi o caso do espetáculo Um Conto em Cada Canto (2016), em que a dupla de idealizadores suscitava o imaginário infantil encenando parlendas, adivinhações e músicas do cancioneiro popular brasileiro.
Ações culturais da Cia. Café com Pão de Teatro nas escolas - Foto: acervo pessoal
Nesse percurso, as praças e ruas também se tornaram palco para a Café com Pão. Fortalecidos pelo teatro de rua, a Companhia participou em 2017 da Festa Literária de Boqueirão (FLIBO). O ímpeto de trazer alegria e de incluir a juventude no fazer teatral motivou o desenvolvimento de peças e de oficinas em escola municipal de Boqueirão.
No decorrer das investidas teatrais da Café com Pão, o ímpeto de amplificar seu impacto na cena cultural local, a Companhia teve a oportunidade de participar do projeto Labirinto das Artes, promovido pelo Serviço Social do Comércio da Paraíba (SESC) ainda no ano de 2018. Com apresentações em João Pessoa, a Companhia recepcionava o público com recitais e músicas do cancioneiro popular.
As dificuldades de acesso aos editais de fomento à cultura e as transformações impostas pela pandemia de Covid-19, como relata Jhonata Almeida, forçaram o grupo a desenvolver novas estratégias para permanecer firme em seu propósito. A Companhia buscou adaptar-se ao digital e seguiu na organização de novos espetáculos.
Dessa vez, o enfoque avançou pela Lenda de Mandi (2023), uma contação de histórias que narra a vida de uma jovem indígena em busca de salvar a sua aldeia. A peça teatral chegou a circular nas escolas do município de Sousa, a convite do Centro Cultural Banco do Nordeste (CCBNB), sendo apresentada pelos idealizadores da proposta.
Contação de história "O auto do boi encantado", por Jhonata Almeida - Video: Café com Pão de Teatro
Mesmo com todo o investimento dado à cultura, a Companhia Café com Pão ainda enfrenta desafios na recepção de seu trabalho que afeta, inclusive, na subsistência da companhia. Gedeão Ferreira relata que é recorrente a tentativa de interferência por alguns gestores da cultura, uma tentativa de apagar trabalho no sentido de divulgação, de ampliação, por parte de quem organiza os eventos. "É uma questão de luta, de resistência mesmo!", recorda o Gedeão Ferreira, integrante do grupo.
Terceiro sinal: luzes apagam, abrem-se as cortinas
O sentimento de satisfação a cada estreia e o retorno que o público dá às produções teatrais que a Companhia Café com Pão de Teatro produz tem reconhecimento dentro e fora da Paraíba. Griôt, um espetáculo baseado no conto africano Os comedores de Palavras. A encenação tem forte apelo à oralidade, à contação de histórias.
Espetáculo Griôt - Vídeo: Café com Pão de Teatro
Com estreia no Festival Abril para o Teatro em setembro de 2019, no município pernambucano de Caruaru, a trupe fez duas apresentações, uma para avaliação técnica no Teatro Rui Lima Rosal (Teatro Sesc Caruaru) e outra para o público em idade escolar e representantes comunitários, no Morro Bom Jesus. O espetáculo chegou a vencer as categorias de Melhor Maquiagem e a de Melhor Figurino. Além disso, foram indicados para Melhor Elenco, Melhor Sonoplastia, Melhor Cenografia e Melhor Grupo.
Após a acolhida calorosa, a Café com Pão fortalece os seus laços com a inclusão e acessibilidade. Selecionados com Griôt em 2023 para o Festival de Insquetes de Teatro Acessível (ETA Festival!) organizado pela instituição Escola de Gente, com sede no Rio de Janeiro, eles terão a oportunidade de concorrer a premiações caso sejam vençam o concurso.
Participar de Griôt foi muito peculiar na minha trajetória como artista, como ator que sou. [...] O grupo detém uma dinâmica muito peculiar. Todos os integrantes colocam a mão na massa mesmo! Desde o texto, a concepção do cenário, a produçao do figurino, o instrumental que é muito presente [...] E Griôt é uma experiência incrível de participar, relata Gedeão Ferreira.
Ainda em 2023, a Café com Pão de Teatro renovará os seus votos com os deuses do teatro e celebrarão os seus oito anos de existência com o espetáculo comemorativo do grupo. A Companhia trará aos palcos, pela primeira vez, a palhaçaria no espetáculo A Festa. Novamente, as cortinas do teatro se abrirão e o público contemplará os personagens registrados nas gavetas da memória destes artistas, subirão aos palcos para contar a história e o fazer teatral como ato político de resistência da Companhia
____________________
Texto: Eduardo Gomes
Produção: Tanmara Gomes
Editor-Chefe: Rafael Melo
Diretora de Redação: Ada Guedes
Comments